Amo minha família, contato com a Natureza, lembranças , experiências vividas e as contadas, também. Gosto de tecnologia para redescobrir informações perdidas e/ou novas. Não aprecio o silêncio e, por isso, ouço rádio (sim, rádio!!!, inclusive de pilha) e escuto música. Para escrever,evito música clássica: infiltro-me nas notas, compassos, melodia e ritmo e, lá se vai a vontade de passar para o papel qualquer coisa. Então, trabalho ao som do que chamam de “breguice“.
Literatura é meu chão e, assim, por décadas fui professora de clássicos--outros nem tanto assim--em Língua Inglesa. Poderia ter sido, Literatura Brasileira, mas, outros escolheram por mim.Alguns de meus autores favoritos são Mário Quintana, Manoel Bandeira, Cecília Meireles, Castro Alves, Machado de Assis, Orwell, Shakespeare, Joyce (contos), Frost, Steinbeck, Poe, Kafka, Fannie Flagg, Cervantes... Não vou mentir, leio muito S. King!
Como professora, aprendi muito com meus alunos .
Mãe de tres gurias e um guri, posso dizer que sempre foram , e serão, grandes companheiros. E, com licença Machado de Assis, tornaram minha vida bem mais apetecida.
Tenho oito netos dos quais me orgulho e com os quais me rejuveneço.
Meu marido foi namorado dos tempos do Colégio Sinodal.
Tive grandes professores no Instituto Rio Branco, Sinodal, Cornell University e Teachers College (Columbia University), porém ressalto, em homenagem, dois deles: Prof. Barth (terceiro ano do, hoje, Fundamental e Prof. Alcino Ferreira de Mello, no antigo Ginásio(Sinodal). Talvez, com eles, tenha aprendido a aprender o significado do que é ser professor (nunca, apenas “estar professor“).
Vovô despediu-se dos familiares e amigos que moravam em sua aldeia, lá em cima. Fora atendido nesse pedido em razão de sua fé e das orações que fizera, ao longo de quase noventa anos. Seria visita breve : havia muitas tarefas a esperá-lo. Antes de descer, pegou um lápis de marceneiro—José deixara-lhe muitos—e anotou , em sua cadernetinha—Pedro dera-lhe uma—os pedidos da turma.
Sua esposa ansiava que olhasse as netas, já adultas, e bisnetas que deixara ainda pequenas; notícias do filho (mesmo que esse nunca parecera amá-la). Titia, sua cunhada, desejava saber das meninas, de sua casa com gerânios e pés de malva. Queria que passasse pelo que fora a antiga fábrica de botões de seu marido. Ah, que lembrasse de ver como iam suas streletiae (“meus pássaros do Paraíso”) de seu jardim.
Vovô Antonio, seu sogro, interessava-se pelas bisnetas com as quais convivera por alguns anos: uma lhes fora entregue aos três meses de idade e a outra tivera difteria. A outra menininha, que, bem pequenininha, fora entregue à avó materna, estava muito bem: divertia-se com eles, entre as campinas, e dava aulas de canto para as criancinhas que chegavam lá cedo demais.
E, enquanto Oma não olhava para as nuvens de algodão, Bisa Antonio cochichou para que Vovô desse uma passada pela turma da comilança e pescarias, na Beira do Rio.
Oma, sua sogra, alertou-o sobre bisnetas, sobretudo a segunda, aquela que, com sua dedicação, salvara da difteria. Eram quatro, ao embarcar na ventania de uma crise aguda de angina, logo depois de acompanhar, pelo seu Ralfo[1], à cabeceira da cama, as desventuras de Albertinho Limonta, Mamãe Dolores e Isabel Cristina em mais um capítulo de “O Direito de Nascer”. Queria saber dos vizinhos da Lindolfo, como o Herr Ercílio, sempre incomodado por alergias. Ansiava notícias da Großße Straße [2], com suas casas bonitas e a calçada com os mesmos desenhos de Copacabana, sem falar na alameda de árvores que a ladeavam desde a pracinha do rio até a esquina de sua casa.
Vovô temia descer , lá do alto, e encontrar tudo destroçado. Como estaria a Fábrica? E…de que modo a vida tratara as meninas e as crianças? Levava o caderno e o lápis para registrar tudo, pelo menos o mais importante, que acontecia, agora, e o que ocorrera desde aquele dia, na cama distante—não a sua—na qual o largaram. Aliás, será que o Senhor havia sido justo com o casal que o abandonara?
Titia falava difícil e lia muito. Havia pilhas de Eu Sei Tudo, Vamos Ler, A Carioca e sua coleção de Correio do Povo. Ah, e a Enciclopédia Jackson, de capa verde, que, volta e meia, folheava para poder discutir, plena de razão, com Vovó e Vovô, na hora do almoço de domingo. Lera tudo, mas gostava de guardá-los para folheá-los, à noite, depois do Repórter Esso.
Certa feita, ao chegarmos à cozinha, sentimos cheiro de papel queimado e deparamos com Titia ainda a alimentar o fogo com algumas folhas de revista na mão. Falou, em resposta a nossos porquês, que tivera motivo: “Muitas lágrimas derramei sobre aquelas revistas. Minha cunhada devolveu-as, num pacote atado com barbante, logo depois que seu marido se foi. Emprestara-as, quando ele foi para o Isolamento. Ficara lá, bem sozinho, só com enfermeiros , freiras e com os outros doentes. A peste branca, como denominavam a tísica, é muito triste. Aparece devagarzinho, sem que a gente reconheça seus sintomas. Os enfermos definham a olhos vistos. Metade deles morre, apesar de submeterem-se a tratamentos doloridos, como a infiltração de ar para dentro dos pulmões, na esperança de curar feridas e fechar as cavernas em seus pulmões.”
“Como é que colocam ar para dentro das costelas? É tipo a bombinha de ar para encher pneus de bicicleta?” perguntávamos intrigadas com o que faziam os médicos para encher de vento o corpo dos doentes.
“No Isolamento do Centenário, há uma sala com macas para os infectados deitarem-se de costas e receber infiltração de ar através de uma seringa grande com uma agulha especial. Meu cunhado fez várias, mas não adiantou. Usaram sais de ouro, ventosas, purgantes, sangrias, óleo de fígado de bacalhau, creosoto e quinino antes de ele acabar no sanatório. Fez até operação pelo espaço, num Centro Espírita. Um médico, em Cacequi, tirou-lhe duas costelas para facilitar as infiltrações. Parecia um fantasma, no fundo da cama,com revistas espalhadas e respingado de sangue.”
Sabíamos que a história era triste sobretudo porque era de verdade, e, ainda por cima, de alguém que nos parecia meio parente. Titia já contara esse drama outras vezes, tantas que a palavra “ isolamento” exercia um fascínio sobre nós e criava imagens fortes e vermelhas em nossas mentes. Sim, porque, na primeira vez que a ouvimos, ela explicou tudo, tintim por tintim.
Não queríamos escutar nada disso à noite, apesar de, antes de dormirmos, de um travesseiro para outro, na cama de casal que repartíamos com muitas brigas, iniciávamos o assunto, maldosamente, com o intuito de uma assustar a outra.
E os sonhos misturavam Margueritte, trágica heroína do romance de Dumas, A Dama das Camélias, com suas flores brancas e infinitas dívidas , lívida em sua alcova, com os corredores vazios do sanatório , cheios da sinfonia da tosse daquele tio distante, que abafava e abanava suas crises com as folhas marrons da revista Carioca.
Certas dessas narrativas marcavam conversas enquanto nos preparávamos para dormir. Uma era a dos gregos, ou romanos, que, para verificar se a morte aproximava-se , cada vez mais, de um doente, pediam que esse escarrasse em um pote com água do mar. Se o sangue descesse ao fundo do pote, o infeliz poderia ir preparando sua despedida do mundo: logo a Foice iria buscá-lo para o desconhecido.
Coitados, pensávamos, ficar esperando para saber o que aconteceria com sua cusparada grossa de sangue era pior do que ficar sem saber o que ainda havia pela frente. Entretanto essa era ainda leve, se comparada à do lume aceso: o fraquinho lançava seu escarro sobre as brasas vivas e, se saísse fumaça sem cheiro, ele, em breve, estaria curado; se subisse do lume um cheiro desagradável, podia, certamente, encomendar sua mortalha.
“É verdade, li no Eu Sei Tudo. Mas acho que isso ainda pode ocorrer lá nos confins da terra. Nem precisam se preocupar, meninas. Não usam mais tais diagnósticos. Vocês são muito influenciáveis: qualquer potoca põe vocês com medo. Ninguém deve temer a verdade. Há muita coisa terrível no mundo que vocês precisam aprender. Talvez, mais tarde, esses conhecimentos possam ser úteis para a vida”, argumentava Titia.
Quando acompanhávamos Vovó em seu tratamento dos ouvidos, com o que parecia um travesseirinho elétrico, para sua inflamação, íamos até bem perto da entrada interna do pavilhão dos tuberculosos. Ficávamos sentadas , imóveis, observando a movimentação de médicos, enfermeiras e freiras. Às vezes, víamos alguém, magro e pálido, de roupão e amparado por uma freirinha, sendo levado a tomar sol na área da frente do isolamento. Tais visões nossa imaginação, acelerada pelas histórias de Titia, transformava em enredos dramáticos, nos quais a mocinha contaminada por seu noivo, condenado à morte próxima porque seu cuspe exalara odores insuportáveis ao queimar sobre brasas, ficaria enfurnada no poço da saudade, atirada no catre do sanatório à espera do fim.
Víamos, em noites de vento e trovões, o pavilhão encher-se de fantasmas que tossiam sangue e deliravam sem parar. Eram os antigos doentes que retornavam para ver se ainda encontravam algum companheiro de tosse e pneumotórax pelas enfermarias cheirando a creolina.
“Queimei tudo, até os barbantes” continuava Titia, referindo-se às revistas. “Elas passavam de mão em mão entre os pacientes. Não foi pelo medo de contágio, mas pelas amarguras armazenadas nas fibras de cada pedacinho dos retratos dos artistas, tão livres e sorridentes, em festas e filmes. Queimei as lembranças dos olhares lacrimosos de dias e noites longas presos naqueles retratos.”
Nós perdemos, dessa forma, a coleção da Revista Carioca. Sobraram-nos, muitos exemnplares do Jornal das Moças, Vamos Ler e Eu Sei Tudo. Em dias cinzentos, voltamos a eles e , aí , assustam-nos aqueles fantasmas dos leitores da Carioca e o azul espantado dos olhos de Titia.
Talvez vocês não lembrem, ou ainda não tenham lido, a história da foto do 1º aninho do Vovô Antonio. Tentarei resumir. Foi num dia quente , início de fevereiro, que Frau Jungfreund aproveitou a chegada de um fotógrafo da capital para perpetuar a imagem de seu filho caçula. Após a sesta, à tarde, banhou o menino e vestiu-o. Aprumou-se, com esmero, colocou o menino no carrinho alto e lá se foi.
O estúdio ficava junto à melhor joalheria da cidadezinha e bem perto do casarão dos Jungfreund. Entrou na loja e cumprimentou o joalheiro que, naquele exato momento, iniciava o processo de derretimento de duas largas alianças que uma viúva recente trouxera-lhe para que as derretesse: desejava que as transformasse em um par de brincos nada delicado—fora dos padrões da época para senhoras distintas—com pedras coloridas advindas das muitas abotoaduras do falecido. Frau Jungfreund pediu-lhe desculpas por interrompê-lo no delicado trabalho. Explicou que tinha hora marcada com o retratista. O joalheiro , então, confidenciou-lhe que não conseguia entender o que levaria a viúva a derreter o símbolo de uma união sagrada e, ainda por cima, tirá-lo do divino para jogá-lo no vulgar. Pior ainda, a futura dona desses enfeites espalhafatosos estaria, com isso—dizia o pessoal do Clube de Canto—a clamar vingança por traição. Além disso, encomendara vestidos nada modestos. O ourives expressou sua perplexidade frente a tais atitudes. Naquele momento, o fotógrafo chamou a discreta mamãe e seu bebê para retratá-lo sobre o falso ninho de cegonhas. Depois de várias tentativas, finalmente, a foto perfeita. O artista prometeu entregá-la em uma semana.
A senhora despediu-se dos dois profissionais. Contudo, levou em sua mente a pergunta: “Por que Grete Funcksnell, a viúva, derreteria as alianças e usaria roupas mundanas?”
No Domingo de Ramos (uma semana antes da Páscoa), após o Culto, houve uma confraternização que culminaria com uma rifa. As mulheres reuniram-se no salão da Casa Paroquial. Havia biscoitinhos. Spriztbier[1], espetinhos de pepino em conserva com queijo colonial, fatias de cuca de uva, dispostos sobre uma mesa com toalha branca de crochê.
As senhoras , em pequenos grupos, seguravam pratinhos e guardanapos enquanto conversavam. Tentavam adivinhar qual seria a rifa: afinal os cartões haviam custado mais do que o preço de dois quilos de açúcar. Frau Jungfreund estava quase certa de que seria uma das famosas tortas da esposa do Pastor, ao passo que outras afirmavam ser um daqueles suportes para folhagens, feitos em madeira trabalhada e com painéis pintados à mão, muito em voga naqueles tempos.Os petiscos estavam prestes a acabar, quando Pfarrer[2] Schulholz tocou a campainha.
“Atenção, prezadas senhoras! Chegou a hora de nossa rifa . A venda dos cartões foi além das previsões e, poderemos alegrar um maior número de famílias com distribuição de roupas, alimentos e brinquedos nessa Páscoa. A nossa congregação agradece a colaboração das firmas comerciais, industrialistas, doadores anônimos, da OASE[3] que preparou os acepipes e montou essa linda mesa. E, agora, menção especial de gratidão à distinta Senhora Witwe[4] Funcksnell pelo objeto que, graciosamente, entregou para nosso sorteio. ”
Muitas palmas soaram no salão. Algumas das presentes queriam saber se a doadora viria para retirar o número do interior da caixa de metal. Frau Pfarrer Schulholz[5] comunicou-as que isso seria impossível : a viúva embarcara, em navio da Costeira para , no Rio de Janeiro, tomar um dos novos transatlânticos que aportaria em Gênova. Naquele momento, deveria estar por águas de Santa Catarina. Calaram-se todos. Nem sequer uma pergunta. Apenas olhares enviesados.
Wilhelmina, mulher do Pastor, tocou a sineta e pediu atenção: o sorteio iniciaria em minutos. Seu esposo já conduzia o professor da Escola Dominical ao tablado, no qual, sobre um parlatório, estava a caixa da sorte. Mine, apelido pelo qual era conhecida, encaminhou-se ao velho harmônio e bateu alguns acordes imponentes numa mistura de Bach e Beethoven (e Mine, claro). A um sinal de seu marido, parou o som e , naquele momento, o velho professor retirou o número , mostrou-o ao Pastor que o leu com solene tensão:
“ Ach! Vejo um dois! Alguém tem um 2 ? ” Muitas sorriam. “Agora , vejo o outro número ! Há entre as presentes alguém com outro algarismo além do 2 ?” Algumas pareciam bem nervosas, ao passo que outras já estavam fora do sorteio. “ E o número é…Mas, o numero é…27! Siebenundswanzig ! VINTE E SETE!”
Incrédula, Frau Jungfreund abanou sua mão. Encaminhou-se ao tablado e mostrou seu cartão. Era o premiado, conferiram o Pastor e o professor. Chegara a hora de saber do premio embrulhado em papel pardo e resguardado por uma teia de cordinhas.
O professor , com uma tesoura, cortou quase uma centena de barbantes que garantiam segurança ao pacote.
O coro “Abre! Abre! Abre!” ecoava pelo ambiente. Ao retirar o último papel pardo, apareceu uma caixa coberta de veludo carmim, cuja minúscula chave fora pendurada ao fecho dourado por uma esmaecida fita de veludo. “Abre! Abre! Abre!” seguia, nesse momento, bem forte. Tremiam as mãos da contemplada. O professor cortou a fitinha. Ela recebeu, prestes a desmaiar, a chave e abriu a caixa. Retirou, com dificuldade, um porta joias dourado. Professor, Pastor, Mine e a jovem senhora examinaram o premio. De repente, grita o Pastor, “ A caixa de joias é de ouro, ouro 18 quilates!” As paredes ecoavam “É de ouro!” misturado ao zumbido das exclamações femininas.
“ É o que se pode ler na tampa da caixa de veludo e na parte inferior do porta joias. Deve valer muitos contos de réis. O que estará guardado nessa maravilha?”
Mine e o professor inspecionaram, bem de perto, o dispendioso objeto.
“Está trancafiado à chave. E não há chave”. O Pastor exclamou, quase aos grityos.
Mine demonstrou sua desilusão: como saberiam se havia, ou não, mais ouro na caixa?
Passava do meio dia, quando decidiram que caberia, apenas, à ganhadora do sorteio–e nova dona da caixa de veludo com o objeto de puro ouro edaquilo que poderia estar guardado dentro dele–resolver o problema da chave inexistente e do mistério da caixa de 18 quilates.
Frau Jungfreund colocou tudo na sacola de crochê que Mine lhe emprestara. Agradeceu a todos e foi para casa.
Sua cabeça pulsava com alegria e , até, certa dose de receio. “ Primeiro o ourives com sua desconfiança com as alianças a derreter, agora, eu—por que eu—recebo esse tesouro de Grete?”
Foto por Mausilinda.
Notas:
[1] Cerveja caseira à base de gengibre, sem álcool.